com coração
pois os demais cheiros das coisas submersas explodiram em casa
esquina, berraram de assombro no osso do sonho, no
meio da praça da cidade irreal, uma multidão de sombras
sambando o candomblé da vida, a encruzilhada do
abismo, corpos incendiados na cerimonia da purificação,
da pacificação, uma multidão de pássaros repentinamente
explodindo por todas as janelas do edifício deserto
e vai se ver é o próprio rio de janeiro, e talvez até seja até
um crepúsculo tropical sambando na tempestade,
jorrando dos olhos da mulher nuinha no oceano de
estrelas e desejos furiosos
que o Luiz foi dando a virada, aos poucos que a
arrancada foi lá em Brasília, se lembra cara? (eu voltava
de uma farra qualquer e no meio da noite cuspindo
angústia na superquadrada cheia de frio só se escutava o
martelo esmurrando um cinzel sanguíneo, um buril
raivoso rasgando a carne de um bloco de pedra-sabão,
fazendo brotar o dia em forma de gestos torturados, de
mãos a se enfiarem por dentro do próprio crânio,
uma escultura gravada na voz dos relâmpagos de um cristal
desesperado)
acontece que luiz já trazia de minas a voz das
montanhas de pedra-sabão e ferro e solidão, já recebera
em belo horizonte (onde nasceu em 1948) o batismo de
fogo da alma poética do pai e do avô, já trazia
escondido no peito uma lua e um espanto enraizados
demais nos velhos cabelos de ouro preto e mariana,
poderosa sugestão das coisas que nos enfeitiçam para
sempre
em 1955 luiz veio para o rio de janeiro, mas em 1961,
antes de completar 13 anos, mudou-se para brasília, onde
iria ficar até 1969
o período cósmico, o céu do planalto desabado sobre
nossas cabeças, os ângulos retos da cidade, o avesso do
labirinto, um espaço estranhamente novo, geometria
banhada de luzes surreais, de vertigens galácticas às margens de uma
vendinha bem goiana
curtir cachaça e outros bêbados mais à beira do lago
(se lembra, cara, do atelier que você construiu dentro do
campus da universidade? bem ao lado moravam aqueles
índios que os linguistas ou coisa assim traziam do xingu,
de bananal, aqueles índios adoravam uma cachacinha
e que ficavam horas seguidas sentados junto a gente
esperando que a noite viesse engolir o horizonte) curtir
violões e cantorias desenfreadas pelas avenidas brancas
rasgadas na terra vermelha do planalto central,
sacudir-se nas festas de rock e pauleira nos clubes às
margens do lago, transar ferro-velho para os objetos
que se multiplicavam, caetano e Dylan, agora aplicações
metálicas fundindo-se na pedra-sabão, procura
desenfreada de uma expressão entre goiás, cerveja,
beatles, alucinação, espaços e estrelas mágicas, mulheres
e índios inadaptados, esfrangalhados na sofreguidão de
uma capital amanhecendo.
em brasília as primeiras vertigens (se lembra, luiz, que
foi em 1967 a primeira apresentação de seus trabalhos
em público, em uma exposição realizada ali no teatro
nacional?) e em Brasília o adeus às ilusões
me explico: se de um lado a universidade de Brasília foi
sepultada, e coe a escombros verdes de tantas
esperanças, por outro lado a obra de arte para você e
seus companheiros de planalto e energia cósmica (o
cildo, o gilherme, o Alfredo e quantos mais?) urrava
dentro das grades de uma prisão muito formal, de um
suporte asfixiado demais, e foi preciso que numa certa
manhã de música e brinquedo vocês libertassem o que
é livre, vocês arrancassem de dentro do peito, de dentro
das veias o que é aberto, vocês derramassem tudo pelos
caminhos encharcados de poesia, de galos e serpentes
do efêmero, de esculturas de vento, de fundas pinceladas
de raiva enlouquecida em espaço tempo
você chegou no rio em 1969 seguindo a estrela do
próprio coração, suas próprias e acuradas percepções,
captando no ar a sinfonia do seu tempo, conceitual art
ou arte pobre, não importa, você sacou de sua mais
autêntica sensibilidade a importância (ou não) de
atravessar túneis como se navegasse o hálito do abismo
ou se pintasse uma flor, de enfiar-se no mar como quem
certamente enfeita o corpo com todas as constelações de
uma iluminada loucura: os cavalos e as galáxias são o
mesmo e claro delírio que brota na curva do coração
estamos sempre a recolher da infância um certo sol
queimando um certo sonho de uma certa memória
de certas minúcias mortas e certamente transfiguradas
pelo incêndio da emoção e da completa incerteza.
em 1970 você voltou a Belo Horizonte na semana da
inconfidência para participar da manifestação “copo à
terra” e ali no parque municipal (como me lembro de nós
meninos, você seguro pelas mãos do papai e mamãe
enquanto eu corria feito doido pelas alamedas, pelas
pontes sobre o lago.) ali onde um dia eu me neguei a
ser pintado pelo guignard para não ficar igual ao vovô
“dependurado na parede coitado”. Ali você incendiou as
suas faixas de plástico, suas interferências na
paisagem e todas as trevas interiores, naquela semana
em que se celebrava o sangue da liberdade, tal
perfume feroz e nuvem tonta que a maioria só conhece de
cerimônia (quase sempre melancólica)
e a partir daí o ritmo apertou, a renovação a cada
respiração, perseguir as formas mais esquivas, aleatórios
brilhos voando invisivelmente o pulso do silêncio abissal.
e, no entanto, a mesma estrada para o cotidiano, roberto
e jagger, o cafezinho e o chope na esquema, jorge bem
e o subúrbio, a fezinha no bicho, a porrada e o berro,
ritmo do trânsito, melaço descendo do coração rasgado e
faca e fumaça.
Em 1971 o prêmio de pesquisa da bienal de são
paulo, vejam só.
em 1972 e 1973, eu e o Sidney transamos
dois cursos no MAM, através do departamento corpo/som,
quando rentamos passar para os alunos um pouco do
ritmo das esferas, saturno mergulhado em seu
impassível e tormentoso movimento, e os trabalhos
criados pelo pessoal sob nossa supervisão forma muito
bonitos, se lembra?
e ainda em 1973 você participou da “expo-projeção”
em são Paulo, quando mostrou o audiovisual “natureza 73”,
sem dúvida alguma o ponto de partida para nova virada,
nova visão do mesmo encantado firmamento
em 1974 foi a exposição na petite galerie , onde ainda
estava muito presente aquela sua pintura
marcadamente metafísica, viajante solto no cosmo ou prestes a romper
o casulo e se enfeitiçar nas insondáveis estrelas da
destruição absoluta, mas onde ao mesmo tempo já
encontramos uma preocupação com o lance da esquina,
com as estrelas e sexos do cotidiano captados num
espelho de bar ou no retrovisor de um caminhão em
disparada, samba macumba navalha doendo na
madrugada carioca.
e foi quando você partiu para realização de um belíssimo
super 8, curtindo em cima do sincretismo que se agita
dentro de todos nós, navegando a batucada e o
futebol, assalto flamengo muamba, o fumo o santo a
repressão o diabo, branco negro asfalto favela rio
de janeiro fevereiro e março, meninas de surf e areia
E esse super 8 foi mostrado lá na bienal de paris, pra
onde você foi em 1975 como representante do brasil.
nessa época você deixou bem clara sua visão de
américa do sul, de bandoleiro terceiro-mundista fascinado
pela incrível liberdade de dançar como um índio sobre
uma trilha de acrílico que não vai dar em parte alguma.
razão, nada; coração, tudo: tem ki sê muito vivo
pra sobrevivê.
Pois estamos em 1977 e você radicalizou de vez todas
essas colocações de artist (equilibrista, eletricista,
musicista, diarista, contrabandista, estruturalista, faquirista,
etc) sintonizado com a luz e o cheiro de nossa realidade
com a malandragem de los macho brasileños entre
putanas em flamas, pois nada mais mítico que o real real.
Com as palavras que se fraturam na língua falada no
brasilbrasileiro , terreiro capoeira pandeiro; uma vertigem
de sóis moendo-se na língua do coração: besame
mucho emoção vagabunda e traiçoeira.
sacação de quem deu trezentas voltas por cima, de
quem foi arrancar os últimos mitos de um campo de
trigo e corvos a dissolver-se em desatino atrás do turbilhão
dos olhos de de um van gogh, além dos demônios mais
desatinados de um bosh, até mesmo no cristal de
nossa contemporânea massificação num lampejo de
warhol, televisão na amazônia, gol de pelé ou berro
de macunaíma.
sacação de quem caiu levantou trezentas vezes
a poeira da invenção de quem rompeu as amarras
mas sabe como é importante o cais de quem só vai
cair porque é doce o precipício de se levantar no fogo
de um sorriso de amor, até quando der ou vier.
o truque, a mágica, a fusão da fotografia , da pincelada
de peles superpondo-se s novas camadas de peles,
relâmpago de não e plástico, lápis ingênuo, olhar feroz,
hiperrealismo caboclo, urbano metafisismo primitivo,
um coração e um pique sem repouso, incendiado de ternura
Balas do último assalto, qual é bixo a doce adolescente
tô sempre nascendo aqui e ali, no bar moderno, entre
samba e constelação no ônibus de abismo hacatombe,
na natureza rasgada e metralhadora, índia estuprada
a bomba e gasolina, américa amerika latina, vertiginosos
trípticos de brama e carnaval e vaselina, palma estalando
na palma do coqueiro, puro flash tão brasileiro,
fotografia, pintura ou alquimia? Nem adianta rotular,
quando infinitamente nenhuma geografia pende a
viagem, mapa estelar no olho menino.
Pois é
Tudo vai chover
Na próxima galáxia.
Afonso Henriques neto
Rio/abril/77