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Conceitual e caboclo

O mundo mais belo é como um monte de pedras lançado em confusão.

Heráclito, Fragmento 124.

 

“No meio do caminho tinha uma pedra”, diz o primeiro verso do antológico poema de Drummond. A pedra e o verso fazem parte da obra de Luiz Alphonsus, mas nada é mais importante que o caminho em sua cartografia poética. Com suas raízes plantadas na poesia mineira, o artista tem um olhar de amante para a paisagem carioca, especialmente para as montanhas da cidade. Sua obra é uma síntese possível para a pluralidade da arte brasileira na década de 1970, período formador de sua inquieta geração. Cartografia poética festeja os caminhos de Luiz Alphonsus com uma seleção de sua obra, em uma abordagem crítica que enfatiza seu pioneirismo na fotografia experimental e na land art – projetos artísticos realizados de modo efêmero nas ruas e na natureza.

“Havia uma pedra no meio do caminho”. E, quando a pedra foi um túnel, Luiz Alphonsus arregimentou seus amigos artistas e os dividiu em dois grupos, explorando a linha aberta – um corte na montanha – como uma expedição para a experiência de espaço e tempo conjugados. Túnel (1969), presente nesta exposição, é até hoje uma das obras mais emblemáticas da arte experimental brasileira. Luiz Alphonsus tirou partido de uma noção de linha infinita, de fluxo contínuo, que estaria presente ainda em obras como as da série 60 white meters, iniciada em 1969, e Encontro em um ponto, de 1970. Do mesmo ano, Negativo positivo transforma a natureza em fotografia e máquina fotográfica simultaneamente, usando a transitoriedade e o simbolismo do fogo para abordar a escrita da luz.

Túnel concentra uma série de preocupações que ainda fazem parte da obra do artista, e que estiveram muito presentes ao longo de toda a sua trajetória. Luiz Alphonsus convidou um grupo de amigos artistas para realizar a experiência no Túnel Engenheiro Coelho Cintra, conhecido como Túnel Novo. Dela, fizeram parte os artistas Odila Ferraz, Thereza Simões (1941)[1] e Guilherme Vaz (1948-2018).  Parte importante da paisagem e da lógica urbana do Rio de Janeiro, a passagem na montanha faz a ligação entre a Avenida Lauro Sodré, em Botafogo, e a Avenida Princesa Isabel, em Copacabana[2]. Na obra de Luiz Alphonsus, os participantes se reuniram na entrada do túnel, pelo lado de Botafogo, e se dividiram em dois grupos distintos: o primeiro percorreu a extensão até Copacabana pelo plano inferior (túnel), ou seja, por dentro do túnel; o segundo fez o percurso pelo plano superior (montanha), por cima do túnel, na trilha do Morro da Babilônia.

A experiência foi documentada em fotos e áudio e, na impossibilidade de se recuperar a integralidade do trabalho, o que é possível apresentar de Túnel, em uma exposição como Cartografia poética, é o registro documental da obra, com suas sequências de imagens e seus sons. Percorrer os vestígios de Túnel cinquenta anos depois de sua realização é perceber que, como o próprio texto que integra a obra insinua, este é um trabalho que fala da coexistência e da disjunção entre espaço e tempo. Corpos que percorrem o mesmo espaço, afastados por seus próprios ritmos e percepções de tempo; corpos que realizam ações simultâneas, teoricamente em um mesmo tempo, mas que estão afastados no espaço, embora iniciem e concluam seus trajetos exatamente nos mesmos pontos.

Cada grupo participante de Túnel executou traços simbólicos feitos no chão. E esses desenhos imaginários partiam do mesmo ponto, se desencontravam completamente em seus percursos, para depois se reencontrarem no fim de cada trajeto. Os riscos eram como uma escrita da cidade e do movimento de seus habitantes sobre ela, o primeiro indício do interesse de Luiz Alphonsus pela observação e construção de uma cartografia poética.

Uma linha fluida e infinita

“Escrita”, termo usado nesse texto algumas vezes, não é um acaso: ao longo de sua carreira, o artista tem usado o desenho e a palavra – fluxos de linhas contínuas – para traçar mapas físicos e subjetivos, como uma forma de discutir nosso lugar no mundo. Luiz Alphonsus perscruta a cidade e o universo com a mesma desenvoltura com que mergulha na poesia; mais do que isso, sua obra evidencia como a poesia tem a mesma estrutura da formação geológica dos planetas e também dos universos. “Palavras e rochas contêm uma linguagem que segue a sintaxe de fendas e rupturas. Olhe para qualquer palavra por bastante tempo e você vai vê-la se abrir em uma série de falhas, em um terreno de partículas, cada uma contendo o seu próprio vazio”, escreveu Robert Smithson em Uma sedimentação da mente (1968). 

As linhas poéticas de Túnel voltariam a se fazer presentes em importantes trabalhos de fotografia, caso de Encontro em um ponto, da série 60 white meters e das versões de Corte na montanha. As imagens de Encontro em ponto (água) e Encontro em um ponto (rocha), de 1970, registram ações de land art, mas também são trabalhos autônomos, que realizam uma interseção entre a fotografia, a pintura e o desenho – uma “unidade tripartida” presente na obra de Luiz Alphonsus do início da carreira aos dias de hoje. As linhas brancas paralelas, presentes em outras obras, aqui caminham para uma convergência. Elas se estendem até desaparecer na água ou em uma parede rochosa, sem, no entanto, se tocarem. Com o trabalho, o artista joga com a definição de linhas paralelas, aquelas que, de acordo com a matemática, vão se encontrar em algum ponto no espaço. Luiz Alphonsus apresenta um esboço de convergência, mas deixa para o observador a tarefa de imaginar o encontro. Ele jamais será visível. Mas Luiz Alphonsus o torna possível, quase palpável, ao insinuar o fluxo infinito das duas trajetórias pintadas em tinta branca na paisagem, e que o tempo um dia tratou de apagar.

Este espaço insinuado, alegórico e metafórico tangencia a ideia de non site definida por Smithson e também se aproxima da radicalidade do artista ao transpor a própria natureza as investigações sobre paisagem que antes seriam mediadas/sediadas pelo espaço de museus e galerias. A linha branca aponta para um caminho na direção de um espaço simultaneamente invisível e sólido, sobreposição e antítese entre a metáfora e a tentativa de materialização da utopia.

Encontro em um ponto apresenta ainda outra característica importante na obra de Luiz Alphonsus: muitas de suas obras trazem o seu título incorporado a elas, e este enunciado demonstra um desejo de comunicação e de interação com os observadores, funcionando ainda como uma espécie de ato fundador por parte do artista. Falar é existir para o mundo e, mais do que isso, inventar um mundo para si. Na arte dos anos 1970, o uso de palavras nas obras de arte muitas vezes funcionou como um programa de ação, um convite ao observador para a co-criação da experiência. Em Encontro em um ponto, o título reforça a proposição de Luiz Alphonsus de um espaço potencial, que não está no plano visível e se constrói como uma espécie de fresta entre o plano real e o virtual.

Branco como luz e apagamento

Este lugar em estado de suspensão, potência e devir fica ainda mais reconhecível na série 60 white meters, iniciada em 1969, em que o artista estende uma faixa branca sobre a paisagem e a fotografa. A possível tradução para português do título do trabalho o torna ainda mais complexo e interessante. Se pensarmos em “60 metros de branco” e não em “60 metros brancos”, contaremos com a polissemia da palavra “branco” trabalhando a favor da construção de interpretações. Por esse veio, “branco” não seria apenas a cor, mas também a metáfora para o lapso ou o esquecimento, presente na expressão “Deu branco”, em que “branco”, curiosamente, corresponde a uma espécie de “apagão”. A faixa, assim como o Corte em uma montanha (1971), seria, então, uma espécie de soluço, uma paisagem que se interrompe ou se põe entre parênteses, cortando a imagem gerada a partir da ação com o correspondente visual de uma digressão machadiana.

Como a pedra de Drummond, a faixa branca é obstáculo, mas que se desenha como potência. Há, na faixa branca, a insinuação de um espaço e de um tempo que não são exatamente virtuais e, sim, outras dimensões possíveis para o real. No Espaço Cultural BNDES, a obra realizada especialmente para a exposição – 60 white meters – Avenida Chile – amplia essa sensação de outras dimensões projetadas pelo trabalho. Luiz Alphonsus fotografou a paisagem da Avenida Chile, com o Pico da Tijuca ao fundo, e estendeu sobre ela a enorme faixa branca. A imagem gerada foi instalada na área de acesso às galerias, com grande circulação de passantes, e com uma faixa branca material e real se projetando no próprio espaço, formando uma espécie de prolongamento da faixa que aparece na imagem. Com isso, o trabalho proporciona uma experiência conjugada entre a paisagem do entorno do BNDES e a “mesma” paisagem vista como fotografia.

A “mesma”, mas que na verdade é outra, já que, como no Túnel, e nos caminhos de Heráclito, não se vivencia o mesmo espaço em tempos distintos. A avenida fotografada já é outra quando o visitante a atravessa para chegar ao Espaço Cultural e visitar a mostra. Da dicotomia entre o que cerca este observador e o que ele vê como imagem é que nasce uma das fricções propostas por esse trabalho. A paisagem-experiência que pode ser acessada pelo visitante nem é uma, a de fora; nem é outra, a da imagem; é “qualquer coisa de intermédio”, como diria Fernando Pessoa, ou uma espécie de terceira margem se, ainda fincados na literatura, quisermos visitar a canoa de um velho pai boiando na terceira margem do rio de Guimarães Rosa.

A ideia de uma “terceira margem”, uma dimensão que é mais experiência subjetiva e projeto compartilhado do que propriamente virtualidade, vai ser uma marca da geração de Luiz Alphonsus. Está presente, com múltiplas facetas poéticas, na obra de artistas como Cildo Meireles e Waltercio Caldas, além de ser uma espécie de atravessamento para artistas da geração anterior, como Lygia Pape, Hélio Oiticica e Amélia Toledo. Se para Cildo esse espaço-projeto é construído a partir da noção de “desvio”, presente no seminal Malhas da liberdade (1976) e nos labirintos de Através (1983-89), Fontes (1992) e Marulho (1991-2001), na obra de Luiz Alphonsus é a linha fluida infinita a responsável por gerar inúmeros desdobramentos. Ela se bifurca e se transforma em falsas paralelas para amotinar o olho na Dedicado à paisagem de nosso planeta (1971).

Fotografia de fogo e areia

Voltando ao campo da fotografia, Negativo positivo (1970), políptico composto por quatro fotografias e obra-síntese da carreira do artista, apresenta essa questão de forma muito evidente. As imagens registram uma ação realizada em uma praia do Espírito Santo, mas também funcionam como uma obra autônoma, não apenas como um documento da ação. Luiz Alphonsus cavou um buraco na areia, mas não um buraco qualquer: usando um molde de madeira, ele criou uma abertura retangular, o avesso de um sólido projetado para o interior do solo, do qual só se é possível ver a superfície e entrever parte do interior. Na primeira imagem, com o dia ainda claro, a cova aparece escura, oca, vazia. Na segunda, já noite, vemos fogo alto no interior do buraco – fiat lux. Na terceira, o fogo diminui, transformando o espaço negativo visto na primeira imagem em uma geometria flamejante, que parece tremular com as chamas. Por fim, na quarta imagem, a escuridão em torno do buraco é quase total, e vê-se o retângulo em brasa, praticamente restrito ao seu próprio volume e perímetro, mas ainda luminoso.

Há nessas imagens uma emulação do ato fotográfico, isto é, da “escrita com a luz” que define etimologicamente a palavra, vinda do grego.  Mas Luiz Alphonsus cria com elas, mais uma vez, inversão e ambiguidade, já que o “negativo” está na primeira imagem. Nela há o dia, geralmente associado à luz, mas não há fogo, isto é, não há uma luz que acontece como imagem, movimento e memória. Já o “positivo” é um processo registrado da segunda até a quarta imagem, insinuando-se como um ciclo e como possibilidade de recomeços – jamais o mesmo fogo; jamais o mesmo vento; jamais o mesmo instante.

O fogo é um elemento que percorre inúmeros trabalhos da geração de Luiz Alphonsus no Brasil e no mundo e que o artista vai usar diretamente em Napalm, também de 1970, sua participação na exposição efêmera Do corpo à terra, realizada por Frederico Morais no Parque Municipal e no Palácio das Artes, em Belo Horizonte. Nesta obra, o artista ateou fogo à faixa branca que aparece em 60 white meters, registrando a sua paulatina destruição. O nome do trabalho é uma referência aos líquidos inflamáveis contidos nas bombas altamente letais lançadas pelos Estados Unidos na Guerra do Vietnã, durante a década de 1960, e que atingiram inclusive a população civil. O uso do fogo e o potencial explosivo e político dos trabalhos reunidos em Do corpo à terra e em eventos realizados um pouco antes, como o Salão da Bússola (1969), ou um pouco depois fez com que o crítico de arte Francisco Bittencourt cunhasse o termo “Geração Tranca-Ruas” para falar de Luiz Alphonsus e seus contemporâneos, todos jovens artistas que iniciaram suas trajetórias entre os últimos anos da década de 1960 e o início dos anos 1970.

Síntese do projeto conceitual no Brasil

O fogo também está presente, por meio da chama de uma vela, no trabalho Conceitual caboclo (1980), incluído em Cartografia poética a um conjunto de trabalhos realizados anos antes, que estiveram presentes ou são contemporâneos da exposição Coração 7/7/77, individual do artista realizada na Área Experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, em 1977. Em Conceitual caboclo, a faixa branca, que em outros trabalhos aparece como a linha infinita que se projeta na superfície, agora pende do teto como uma espécie de parábola ou cascata. Nela, estão escritas em tinta preta, à mão, quatro expressões: “PAISAGENS CARIOCAS”, “CONCEITUAL CABOCLO”, “AMBIENTAL ENIGMÁTICO” e “O DESPACHO DAS ARTES”. Na parte da faixa que toca o chão, há quatro garrafas, uma delas com uma vela, que tanto pode ser apresentada acesa quanto apagada.

Amarradas por cordas tensionadas, as velas formam o que um europeu poderia enxergar como uma rosa dos ventos, com seus quatro pontos cardeais. Mas um brasileiro, especialmente um brasileiro não contaminado pelos intolerantes tempos em que estamos mergulhados, não teria dificuldade em perceber nesses elementos uma sobreposição entre “o despacho das artes” e a sua encruzilhada, isto é, entre o objeto ou corpo imantado de poder e o lugar a ele destinado. Mais “Tranca-Ruas” impossível: o nome de uma das mais conhecidas manifestações do orixá Exu nas sincréticas giras de umbanda do Rio de Janeiro pousa como uma luva – ou uma vistosa capa – neste trabalho. Conceitual caboclo é fundamental para compreender não apenas a obra de Luiz Alphonsus, mas a contribuição que toda a sua geração dá ao mundo ao se apropriar do vocabulário da arte conceitual e enchê-lo de ruídos e cacos – e uso aqui esta palavra com duplo sentido: tanto valem os pedaços de vidro quando o improviso que insere novas frases em uma peça de teatro.

Há, nesse trabalho, um manifesto enviesado, não programático e não anunciado, que, no entanto, diz muito sobre a obra de Luiz Alphonsus e suas “paisagens cariocas”, tão presentes nas obras de land art e em séries como Bares cariocas, que veremos a seguir. E o que dizer de um “ambiental enigmático”, quando se pensa nas já comentadas Negativo positivo, Encontro em um ponto e Dedicado à paisagem de nosso planeta? Mas nesse “despacho das artes” há ainda a expressão que dá titulo ao trabalho: “conceitual caboclo”. E é ela que dá conta da aproximação que o artista e seus pares vão fazer dos elementos da cultura popular para criar os objetos turbulentos, vídeos, intervenções e performances que permeiam a arte brasileira dos anos 1970. Conceitual, mas mestiço e polifônico, brasileiro; projeto, mas sempre híbrido e apoiado na gambiarra e mediado pelo coração, como no título da exposição de Luiz Alphonsus no MAM.

Em Cartografia poética, o núcleo de trabalhos apresentados na vizinhança de Conceitual caboclo tangencia tanto o enigma quanto o atravessamento popular. Em Tensão (1972), por exemplo, em vez do deslocamento seco proposto pelo ready made de Duchamp ou do assemblage estético herdado e reinventado de Picasso, temos um arranjo criado a partir de uma banqueta de botequim, na qual repousa um pandeiro. Logo acima, uma faca com a ponta voltada para a superfície do instrumento, suspensa por um fio desgastado em uma roldana.  A soma desses elementos vindos das margens da sociedade e das bordas do dia – o samba, o bar, a faca que pode matar – ganha outras voltagens quando se pensa na data do trabalho, o início dos anos 1970, período de recrudescimento da política brasileira.

Besame mucho (1973), cuja versão original foi apresentada um ano depois da criação de Tensão, também recorre a uma estética popular para tratar da violência. Na encenação das mortes e dos ocultamentos de corpos ocorridos durante os chamados anos de chumbo, o próprio Luiz Alphonsus aparece em cena como assassino[3]. A sucessão de fotos – hoje tratadas para vídeo, na época uma projeção de slides – apresenta imagens tratadas como um misto de história em quadrinhos em fotonovela, usando apenas a bicromia do preto com vermelho. Enquanto vemos o desenrolar dos acontecimentos, ouve-se ao fundo a execução do bolero Besame mucho na versão de Ray Coniff, hit dos bailes de debutante e de formaturas na juventude do artista. Como em Tensão e na pintura As balas que restaram do meu último assalto – Zona Sul/Baixa Flu (1975-1984), também presente na exposição, Besame mucho transpõe o popular para o ambiente da violência, e vice-versa, para que, nesse aparente exílio amortecedor, tudo se torne ainda mais incômodo e chocante.

Cultura popular como patrimônio

A referência ao Rio de Janeiro aparece claramente em As balas... e se insinua em Tensão, mas é ainda mais forte em todos os trabalhos de Luiz Alphonsus sobre as montanhas da cidade e sobre Copacabana, e também na série Bares cariocas. Bares cariocas é um projeto que o artista iniciou no fim dos anos 1970 e gerou cerca de três mil imagens, todas realizadas à noite, em bares bem simples e populares de várias regiões da cidade. Cartografia poética reúne cerca de 150 dessas imagens em um ambiente imersivo, montado próximo aos backlights Sinuca no morro (1975) e Bar moderno (1975-2018) e ao filme Nilton Bravo (1979), sobre o pintor de inúmeros painéis decorativos em bares do Rio, que o escritor Carlos Heitor Cony chamou de “o Michelângelo dos botequins”[4]. Nesse conjunto de trabalhos, aparece o reconhecimento do chamado boteco “pé-sujo” como um patrimônio cultural imaterial e imagético do Rio, além de um território livre, no qual todas as classes sociais, etnias e gêneros podem se encontrar. Chama a atenção, no conjunto de fotos, a quantidade expressiva de casais ou duplas inter-raciais, diversidade que parece atrair o olhar do artista. São igualmente presentes as imagens que retratam a ambientação dos bares, sua atmosfera: caixas, garrafas, sinuca, mobiliário, tudo o que forma uma espécie de inventário visual, uma cartografia afetiva desses lugares.

Do meio para o fim da década de 1970, fica clara a mescla entre uma estrutura de pensamento vinda de seu tempo com um interesse pelo urbano e, mais do que isso, pela arte e a cultura populares que o Brasil e o Rio de Janeiro irradiam. Desde então, ele vem conciliando a racionalidade do projeto experimental com o pulsar da subjetividade. Em Cartografia poética, tais características se infiltram até em trabalhos, que, numa primeira visada, aparentam ser extremamente racionais e conceituais. É o caso de Horizonte. Duas fotos desta série foram montadas junto à frase que acompanha os trabalhos: “Quando você olha outra vez, o horizonte nunca está no mesmo lugar”. Mais uma vez, é a palavra que evidencia e reforça o coração da experiência que o trabalho propõe: a do entendimento do próprio horizonte como uma linha movente e projetada.

Para realizar as imagens, em 1979, Luiz Alphonsus usou dupla e sucessiva exposição nos negativos, fazendo com que de fato se perceba que o horizonte “anda”, se move na medida em que nós nos movemos. O horizonte só existe porque nós o vemos, é como o espaço finito-infinito, abismo utópico insinuado pelas linhas de Encontro em um ponto. Em última instância, o horizonte está mais em nós do que no que vemos. As soluções técnicas que hoje seriam simples, depois do advento dos programas de manipulação de imagem e da fotografia digital, exigiam grande engenho à época, em que era preciso operar câmeras e filmes analógicos. Se em Horizonte o pioneirismo do artista aparece na administração da velocidade e das incidências de fotogramas, em trabalhos como Ônibus 74 (1974) vemos Luiz Alphonsus fazer uma espécie de assemblage/colagem de imagens distintas, a partir de intervenções diversas no negativo. Nesta imagem, fica clara ainda uma sobreposição de dois universos muito caros a Luiz Alphonsus: a cidade e o cosmos.

Essa duplicidade aparece nas fotografias Paisagem urbana e Paisagem cósmica, ambas de 1973, em que o artista aparece de costas para o observador. Na primeira, ele mira a paisagem de Botafogo, sem que haja nenhuma manipulação do negativo. Na outra, Luiz Alphonsus aplica manualmente um novo fundo, em que passa a encarar o cosmos. “Meu quintal é maior do que o mundo”, afirma um dos versos do poeta Manuel de Barros. Minha cidade, meu cosmos, meu mundo: a projeção da paisagem carioca rumo ao universo, há tanto uma reflexão sobre o lugar que cada um pode ocupar em seus mapas quanto uma preocupação – pessoal e geracional – com os então novíssimos estudos da Física que pensavam as dobras de espaço-tempo ou o tempo como uma experiência subjetiva e intransferível. As obras cósmicas de Luiz Alphonsus foram ainda uma forma de plasmar sua relação com a luz. As explosões de luz de suas fotografias e pinturas cósmicas não deixam de ser, mais uma vez, a afirmação metalinguística do fazer fotográfico e da aparição irradiadora da cor branca que, no limite do “estouro”, reverte a luz em vórtex e trevas, cova na areia da praia em Negativo positivo. Ou simplesmente Black hole (1990), nome de uma das mais instigantes obras do artista nesse segmento de trabalhos.

Filosofia, física e história da arte

As pinturas cósmicas estabelecem um diálogo direto com a história da pintura, a partir de azuis clássicos como ultramarino e o índigo, presentes em obras dos chamados “mestres da pintura” nas mais diferentes épocas. Por meio desses trabalhos silenciosos, Luiz Alphonsus atinge sua voltagem mais despudoradamente filosófica, abarcando também, numa espécie de espiral, outra característica que norteia sua poética desde o início: a preocupação com a palavra. Nas telas A criação da linguagem e A perpetuação da linguagem, transparece o tratamento dos sistemas linguísticos como universos que, assim como as galáxias e estrelas, podem experimentar explosões, expansões, transformações e apagamentos.

Os azuis das pinturas estão presentes em outra obra seminal e nos levam ao coração. Não o do corpo, o desta mostra. É ele que acelera agora, enquanto eu conto, antes de terminar o texto: por meio de Cartografia poética, a arte brasileira recupera Ambiente (1969), instalação destruída pelo incêndio do Museu de Arte Moderna, em 1978. Estão lá os azuis e os corpos geométricos que se desestruturam do volume e suas dobras para o espaço que vai perdendo suas arestas, como a fogueira encarnada que se tinge de tons frios até consumir a si mesma. Dividido em quatro momentos, como Negativo positivo, Ambiente é igualmente uma obra cíclica, que vai do volume cheio de quinas e abismos para o desenho de superfície, com o corpo inicial perdendo partes até ficar no mínimo essencial. Como uma pedra que vai sendo trabalhada pela erosão. Ou como um volume que, mesmo faltoso e mutilado, ainda guarda em si, virtualmente, a memória dos pedaços que lhe foram tirados. A memória é o marco da experiência e, como prova a obra de Luiz Alphonsus, a vida eterna de todas as formas e signos. A memória é a pedra no caminho.

“Nunca me esquecerei desse acontecimento/ na vida de minhas retinas tão fatigadas”: efêmera como o fogo ou os segundos que escorrem, uma exposição pode sobreviver ao tempo quando faz nascer de si um patrimônio que concilia memória e futuro.  “É nada que teu te ofereço/ Menos será que um gemido/ E nele, mal despedido/ converto-me, desapareço”, diz o início do poema Canção andeja, de Alphonsus de Guimaraens Filho, pai de Luiz Alphonsus e grande amigo de Drummond. Com ele este texto faz silêncio até a próxima chama, o próximo encontro.

 

[1] Thereza é uma artista cuja obra ainda aguarda uma pesquisa profunda, que dê a ela a visibilidade que esta grande criadora merece. Ela desenvolveu um trabalho figurativo contundente e em vários suportes durante a ditadura militar brasileira, demonstrando a manipulação de imagens que se tornariam icônicas. Também foi uma pesquisadora da relação entre arte e imagem, realizando obras site specific com carimbos, como ocorreu na antológica exposição Do corpo à terra (1970), em Belo Horizonte. O não reconhecimento da obra de Thereza e as pesquisas ainda a realizar sobre sua trajetória dizem muito sobre os processos de apagamento e silenciamento das mulheres na história da arte brasileira.

[2] Inaugurado pelo prefeito “bota-abaixo” Pereira Passos em 1906, o  Túnel Novo, antes conhecido como Túnel do Leme, teve papel fundamental na integração da orla do Rio de Janeiro à sua região central. Antes dele, era preciso percorrer todo o bairro de Botafogo até a Lagoa Rodrigo de Freitas e a partir dela atingir as praias de Copacabana e Ipanema. No início, o túnel tinha apenas uma galeria. A segunda foi construída no fim dos anos 1940.

[3] O trabalho é uma homenagem do artista a Honestino Guimarães, presidente da UNE desaparecido nos anos 1970 e seu grande amigo. O atestado de óbito foi entregue à família apenas em 1996, sem a causa mortis. 

[4] Além de retratar Nilton Bravo (1937-2005) no documentário, Luiz Alphonsus foi parceiro do artista em uma série de trabalhos.

Daniela Name, março de 2019. Texto para o catalogo da exposição Cartografia Poética. Realizada na Galeria BNDES.

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