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Entre o Cósmico e a Cosmos Pólis



Nascido em Belo horizonte, Luiz Alphonsus de Guimaraens mudou-se ainda criança para o Rio de Janeiro, então capital de República.Em 1961 transfere-se com a família para Brasília, cidade na qual iniciou seu trabalho e passou a integrar grupo formado por Cildo Meireles, o músico Guilherme Vaz e também por Alfredo Fontes. No final da década de 60 retorna definitivamente ao Rio de janeiro onde vive e trabalha até hoje.O breve resumo biográfico não é gratuito. Ele nos permite uma primeira associação: os mais importantes momentos da formação artística e existencial de Alphonsus tiveram por pano de fundo e coincidiram com os momentos mais importantes da história recente tanto do Rio de Janeiro, quanto de Brasília.

 

Em 1955, quando a família de Luiz transfere-se para o Rio de Janeiro, a estrela da cidade iluminava solitária, com seu brilho hegemônico, a constelação cultural brasileira. Cidade berço do movimento neoconcreto, da Bossa Nova e do projeto da nova capital, aqui concebida e daqui executada (por isso mesmo baseada num arquétipo desnecessariamente litorâneo para o planalto, pois sua a planta em tripa não fora ditada pela aconchegante opressão de morros, tal como ocorreu com a velha Salvador e o próprio Rio...e sim por uma espécie de modelo urbano comum às três capitais que o Brasil já teve), a metrópole carioca não corria, ao menos aparentemente, qualquer risco com as mudanças das quais era a principal executora.

 

Os guimaraens mudaram-se para Brasília no ano seguinte ao de sua inauguração em 1960. Trocavam assim, junto com parte do governo, o antigo Distrito Federal, pelo novo, em nome do sonho e da promessa de um outro Brasil. O Rio de Janeiro perdia a capitalidade, mas tornara-se uma poderosa cidade-estado, a Guanabara, estado cuja extinção levou Luiz Alphonsus, em 1974, a produzir um desenho crítico e premonitório... Minha Homenagem ao distinto Ex-tado da Guanabara.

 

Logo em seguida a essas mudanças geopolíticas cruciais para nosso futuro, ocorre o golpe militar de 1964, cuja tensão máxima foi registrada justamente nas duas capitais brasileiras: a legal, onde vivia o jovem Alphonsus, e a de hábito... a Guanabara, para onde convergiram todas as tropas golpistas. Cinco anos mais tarde a ditadura, que conseguira calar o novo DF com a dissolução do projeto pioneiro da Universidade de Brasília, teve de enfrentar as revoltas estudantis que conturbaram o Brasil a partir do Rio.

 

É nesse clima de ebulição que o Rio de Janeiro acolhe não somente o recém retornado Luiz Alphonsus, agora já adulto e artista promissor, como também milhares de outros, vindos de todo o país, atraídos pela pluralidade da cosmos polis caos. Dentre estes jovens estavam Cildo Meireles, Guilherme Vaz e Alfredo Fontes, cuja presença na cidade, completava a transferência do grupo do DF para a Guanabara. Eles foram possivelmente a primeira contribuição cultural da nova capital à antiga, que, como antes, continuava sendo o epicentro da vida cultural e nacional brasileiras (cinema novo, opinião 65 e 66, nova objetividade (1967), tropicalismo...). A vanguarda brasileira à época, conforme Frederico Moraes era carioca, não por bairrismo ou por um dom genético dos nela nascidos, mas por somar a contribuição do melhor que o país inteiro produzia. Por isso era composta de vários grupos aos quais se somaram a turma de Brasília...

 

Em 1986 a galeria de Arte BANERJ, sob a orientação do crítico Frederico Moraes, colheu, dentre outros, um depoimento de Luiz Alphonsus sobre a Geração 1969-70. Nele o artista explica a importância de Brasília em sua vida e formação: “Brasília fez nossa cabeça. Havia uma ligação cósmico-planetária com a cidade que estava nascendo, no meio do Brasil, com aquele céu enorme. Era impossível não sentir o impacto da cidade, no início meu trabalho era expressionista, o de Cildo também. Mesmo o Guilherme, em música, era expressionista. Nós tínhamos uma certa preocupação em discutir a arte por um ângulo científico, mas havia aquele céu sobre nossa cabeça, um lance metafísico. Eu adorava Brasília. Creio também que a cidade impôs ao nosso trabalho uma escala planetária. Por outro lado, começava àquela época a exploração do espaço cósmico, o homem começava a escapar das fronteiras de seu planeta”.

 

Luiz Alphonsus logo percebeu que Brasília poderia ser tomada qual um cosmo sob diversos pontos de vista: as profecias sobre seu sítio; o grande afluxo de esotéricos e místicos de diversos matizes; as incursões jamais comprovadas de ovnis; a gigantesca cúpula celeste que, como um planetário natural e imbatível, envolve todos os recantos desta cidade horizontal, construída num espaço horizontal; o cosmo simbólico de uma capital nascida do nada e povoada por todos, de classes sociais diversas e mescladas, vindas de todo o país; a ordem urbana planejada, e, finalmente, a própria corrida espacial, fruto da guerra fria, que sintonizara a atenção do planeta pelo resto do universo e gerava sem parar especulações e controvérsias.

 

Alphonsus vivenciou intensamente a pluralidade de portais dessa potência cósmica. Deixou-se por ela invadir, afetiva e poeticamente, ao ponto de depois de desistir de ser astrônomo, torná-la um dos dois pólos essenciais de seu trabalho. Entretanto, por um problema de escala, o cosmo, no qual nos inserimos, é inabitável por conta de sua macro-grandeza. Sequer podemos contemplá-lo na sua totalidade abstrata e invisível. Alguns de seus primeiros trabalhos realizados no Rio (Negativo-Positivo, de 1970 e Um Corte na Noite, feito em 1974) trazem a marca explícita desse pólo poético.

 

O cosmo passível de ser vivido e transformado materializou-se há milênios nas grandes cidades, as Cosmos Polis. Desde a Babilônia ancestral até a atualidade de Londres, Paris, Nova York, Berlim e Pequim; de Alexandria e Roma à capital asteca México-Tenochtitlán, maior cidade da América pré-colombiana e desta à Buenos Aires ou ao Rio de Janeiro, apenas como exemplos, todas são e foram o cosmo possível... o centro do mundo para os seus habitantes.

 

Se Brasília, por um lado, tornara-se a conexão destes vários portais para o cosmo, por outro, sobretudo após a intervenção na UNB, não tinha, por força de seus poucos anos de existência, qualquer traço de cosmopolitismo. Tornara-se cósmica, mas não um cosmo. A melhor oportunidade de fruí-lo, no Brasil dos 60, era residir no Rio de Janeiro. Opção feita por Luiz Alphonsus, Alfredo Fontes, Cildo Meireles e Guilherme Vaz, único do grupo a retornar para Brasília.

 

Como um ovo de serpente, o Rio de Janeiro já demonstrava alguns sinais de sua futura fadiga crônica: a malandragem transmutada em bandidagem, a velha cordialidade de outrora em esperteza agressiva, a substituição do cosmo pelo caos urbano, prenunciadas em diversas séries de Alphonsus como Homenagem ao Cinema.

 

Nossa sofrida e magnífica cidade encontrou em Luiz Alphonsus seu intérprete maior, mais constante e fiel, dentre todos os artistas que aqui produziram a partir dos anos 70. Seus ícones essenciais, das montanhas-monumento – Pão de Açúcar, Corcovado, Gávea e Dois Irmãos –, mencionadas pela geógrafa Lísia Bernardes, aos bares populares; do popular Nilton Bravo, pintor de bucólicas cenas que ornavam as paredes não azulejadas dos botequins cariocas, com o qual Luiz partilhou a autoria de sete pinturas, à marginália entocada nos becos das favelas; até as mulheres que de dia ornavam suas praias e brilhavam à noite com seu glamour fosforescente  - todo o afeto cosmopolita de Luiz, seu coração (tema da mostra Coração 7/7/77, realizada no MAM ), celebram o cosmo urbano no qual sua obra e sua vida de fato floresceram.

 

Podemos sem qualquer dúvida afirmar que a extensa produção de Luiz Alphonsus desdobra-se e flutua, entre o cósmico, representado por sua experiência brasiliense, e o cosmo caos da cidade do Rio de Janeiro. Trabalhos como Bar Moderno (Mr. Freedom) e o Triptico nº 4 da série Homenagem ao Cinema da exposição Coração 7/7/77-MAM Rio conjugam situações típicas da urbe carioca, com um fundo galáctico. São sínteses do sentido poético permanente de sua obra.

 

Evidentemente a busca de um locus para o homem e para o artista que caracteriza o núcleo poético da obra de Luiz Alphonsus – busca associada ao fato de ter vivido em três das mais importantes cidades brasileiras nos seus 20 primeiros anos – aproximou-o da paisagem. Suas paisagens (tanto as da série, ainda em curso, Brazilian Landscape, quanto as do Planalto Central, e as das mostras Edições, e Rio de Janeiro Linha do Céu, realizadas, respectivamente, na Petite Galerie em 1984 e em 1987 e as Paisagens Cariocas) não são, como de costume, janelas abertas para a contemplação do espectador, mas registros dos lugares por onde Alphonsus viveu sua paixão de artista na cena urbana da megalópole. Mais que cenas aprisionadas em quadros suas “paisagens” indicam roteiros que conduzem, por um lado, a eles mesmos, mas simultaneamente estabelecem suas conexões com o planeta e o Universo.

 

O Observador e o Passante reitera essa nova equação perceptiva. Ao artista cabe o papel de observar, o que não quer aqui dizer estar parado num ponto fixo, situado a uma distância constante do observável. Como observador, o artista não está condenado à contemplação, mas destinado a extrair das situações que observa todas as possibilidades que elas contenham. Já o público, contemplador silencioso das obras do passado, tem por novo destino a passagem e a circulação, análogos de seu deslocamento no Caos das Cosmos Polis.

 

Seus trabalhos mais recentes, no entanto, afastaram-se da temática icônico-urbana que vinha movendo sua produção ao longo das últimas décadas, para retomar, ainda que de modo bastante diverso, as imagens cósmicas das quais brotaram o sentido inicial de sua obra.... que agora renasce.

 

 

Fernando Cocchiarale

Rio de Janeiro agosto de 2000

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